Bem-aventurado João Duns Scotus
Sacerdote, doutor sutil e mariano (1265-1308). João Paulo II aprovou seu culto no dia 20 de março de 1993.
Nasceu em Duns, na Escócia, pelos fins de 1265 e, muito jovem ainda, foi recebido na Ordem de São Francisco de Assis. Foi ordenado presbítero no dia 17 de março de 1291. Após obter a graduação acadêmica na Universidade de Sorbonne, em Paris, foi professor nas universidades de Cambridge, Oxford, Paris e, finalmente, em Colônia.
Verdadeiro filho do Porevello de Assis, investigou com grande sutileza a divina Revelação, produzindo muitas obras filosóficas e teológicas. Com vigor ardente anunciou o mistério do Verbo Encarnado e foi incansável defensor da Imaculada Conceição da Virgem Maria e da autoridade do Romano Pontífice. Em 23 de junho de 1303, por se ter recusado a subscrever o libelo de Filipe IV, o belo, Rei da França, contra o Papa Bonifácio VIII, foi expulso de Paris, indo para Colônia, onde a 8 de Novembro de 1308 foi colhido por morte prematura, no auge de sua atividade magisterial.
A grande fama de santidade de que o insigne teólogo se viu cercado na vida, por causa de suas excepcionais virtudes cristãs, bem cedo lhe mereceu, na só no âmbito da Ordem seráfica, mas também em Colônia, na Alemanha, onde está sepultado, e em Nola, na Itália, um culto Público que o Papa João Paulo II confirmou a 6 de Julho de 1991.
Scotus viveu em um contexto desafiador e, ao mesmo tempo, extremamente fecundo. O século XIII, no qual também viveram Tomás de Aquino e Boaventura, é atravessado por duas trajetórias filosófico-teológicas bem definidas: agostiniano-boaventuriana e aristotélico-tomista. E uma única matriz polêmica a provocá-las e animá-las: o ingresso das obras de Aristóteles na universidade de Paris.
Nesse contexto, Scotus assume uma postura crítica face aos pressupostos e às principais posições defendidas por ambas as escolas, revelando-se como um pensador original.
Destaca-se pela fina precisão em bem discernir, o que lhe possibilitou dissipar inúmeras confusões e esmerar-se na especulação acerca das questões filosóficas e dos mistérios da fé. O “Doutor sutil” se caracteriza, ainda, por um raciocínio deveras singular capaz de, num cerrado diálogo com seus interlocutores, desconstruir seus argumentos e forjar conceitos e linguagem novos cada vez mais precisos e inclusivos. Com Scotus, talvez o pensamento cristão tenha atingido o mais alto vértice da especulação.
Mensagem do Papa Bento XVI:
Uma antiga inscrição sobre seu túmulo resume as coordenadas geográficas da sua biografia: “A Inglaterra o acolheu; a França o educou; Colônia, na Alemanha, conserva seus restos; na Escócia ele nasceu”. Não podemos descuidar estas informações, também porque temos poucas notícias sobre a vida de Duns Scotus. Ele nasceu provavelmente em 1266, em um povoado que se chamava precisamente Duns, nas proximidades de Edimburgo. Atraído pelo carisma de São Francisco de Assis, entrou na família dos Frades Menores e, em 1291, foi ordenado sacerdote. Dotado de uma inteligência brilhante e levada à especulação – essa inteligência pela qual mereceu da tradição o título de Doctor subtilis, “Doutor sutil” -, Duns Scotus foi dirigido aos estudos de filosofia e de teologia nas célebres universidades de Oxford e de Paris. Concluída com êxito sua formação, dedicou-se ao ensino da teologia nas universidades de Oxford e de Cambridge, e depois de Paris, começando a comentar, como todos os Mestres do seu tempo, as Sentenças de Pedro Lombardo. As principais obras de Duns Scotus representam precisamente o fruto maduro dessas lições, e tomam seu título dos lugares nos quais lecionou: Opus Oxoniense (Oxford), Reportatio Cambrigensis (Cambridge), Reportata Parisiensia (Paris). De Paris ele se afastou quando, após o começo de um grave conflito entre o rei Felipe IV o Belo e o Papa Bonifácio VIII, Duns Scotus preferiu o exílio voluntário, ao invés de assinar um documento hostil ao Sumo Pontífice, como o rei havia imposto a todos os religiosos. Assim, por amor à Sé de Pedro, junto aos frades franciscanos, abandonou o país.
Queridos irmãos e irmãs: este fato nos convida a recordar quantas vezes, na história da Igreja, os crentes encontraram hostilidade e sofreram inclusive perseguições por causa de sua fidelidade e de sua devoção a Cristo, à Igreja e ao Papa. Nós todos contemplamos com admiração esses cristãos, que nos ensinam a proteger como um bem precioso a fé em Cristo e a comunhão com o Sucessor de Pedro e, assim, com a Igreja universal.
No entanto, as relações entre o rei da França e o sucessor de Bonifácio VIII logo voltaram a ser amistosas e, em 1305, Duns Scotus pôde voltar a Paris para lecionar teologia com o título de Magister regens, que hoje seria o de professor efetivo. Sucessivamente, os superiores o enviaram a Colônia como professor do Studium teológico franciscano, mas ele morreu no dia 8 de novembro de 1308, com apenas 43 anos de idade, deixando, contudo, um número relevante de obras.
Por ocasião da fama de santidade de que gozava, seu culto se difundiu em pouco tempo na ordem franciscana e o venerável Papa João Paulo II quis confirmá-lo solenemente beato no dia 20 de março de 1993, definindo-o como “cantor do Verbo encarnado e defensor da Imaculada Conceição”. Nesta expressão está sintetizada a grande contribuição que Duns Scotus ofereceu à história da teologia.
Antes de tudo, meditou sobre o mistério da Encarnação e, ao contrário de muitos pensadores cristãos da época, sustentou que o Filho de Deus teria se feito homem ainda que a humanidade não tivesse pecado. Ele afirma, na Reportata Parisiensa: “Pensar que Deus teria renunciado a esta obra se Adão não tivesse pecado seria totalmente irracional. Digo, portanto, que a queda não foi a causa da predestinação de Cristo, e que, ainda que ninguém tivesse caído, nem o anjo, nem o homem, nesta hipótese Cristo teria estado ainda predestinado da mesma forma” (in III Sent., d. 7, 4). Este pensamento, talvez um pouco surpreendente, nasce porque, para Duns Scotus, a Encarnação do Filho de Deus, projetada desde a eternidade por parte de Deus Pai em seu plano de amor, é cumprimento da criação e torna possível a toda criatura, em Cristo e por meio d’Ele, ser cumulada de graça e dar louvor e glória a Deus na eternidade. Duns Scotus, ainda consciente de que, na realidade, por causa do pecado original, Cristo nos redimiu com sua Paixão, Morte e Ressurreição, reafirma que a Encarnação é a maior e mais bela obra de toda a história da salvação e que esta não está condicionada por nenhum fato contingente, mas é a ideia original de Deus de unir finalmente todo o criado consigo mesmo na pessoa e na carne do Filho.
Fiel discípulo de São Francisco, Duns Scotus amava contemplar e pregar o mistério da Paixão salvífica de Cristo, expressão do amor imenso de Deus, que comunica com grandíssima generosidade fora de si os raios da sua bondade e do seu amor (cf. Tractatus de primo principio, c. 4). E este amor não se revela somente no calvário, mas também na Santíssima Eucaristia, da qual Duns Scotus era devotíssimo e que via como o sacramento da presença real de Jesus e como o sacramento da unidade e da comunhão que nos induz a amar-nos uns aos outros e a amar a Deus como o Sumo Bem comum (cf. Reportata Parisiensia, in IV Sent., d. 8, q. 1, n. 3).
Queridos irmãos e irmãs: esta visão teológica, fortemente “cristocêntrica”, abre-nos à contemplação, ao estupor e à gratidão: Cristo é o centro da história e do cosmos, é Aquele que dá sentido, dignidade e valor à nossa vida. Como o Papa Paulo VI em Manila, também eu, hoje, quero gritar ao mundo: “[Cristo] é o revelador do Deus invisível, é o primogênito de toda criatura, é o fundamento de tudo; é o Mestre da humanidade, é o Redentor; nasceu, morreu e ressuscitou por nós; Ele é o centro da história e do mundo; é Aquele que nos conhece e que nos ama; é o companheiro e o amigo da nossa vida… Eu nunca terminaria de falar d’Ele” (Homilia, 29 de novembro de 1970).
Não somente o papel de Cristo na história da salvação, mas também o de Maria é objeto da reflexão do Doctor subtilis. Na época de Duns Scotus, a maior parte dos teólogos opunha uma objeção, que parecia insuperável, à doutrina segundo a qual Maria Santíssima esteve isenta do pecado original desde o primeiro instante da sua concepção: de fato, a universalidade da Redenção levada a cabo por Cristo, à primeira vista, poderia parecer comprometida por uma afirmação semelhante, como se Maria não tivesse tido necessidade de Cristo e da sua redenção. Por isso, os teólogos se opunham a esta tese. Duns Scotus, então, para fazer compreender esta preservação do pecado original, desenvolveu um argumento que foi depois adotado também pelo Papa Pio IX em 1854, quando definiu solenemente o dogma da Imaculada Conceição de Maria. E este argumento é o da “redenção preventiva”, segundo a qual a Imaculada Conceição representa a obra de arte da Redenção realizada em Cristo, porque precisamente o poder do seu amor e da sua mediação obteve que a Mãe fosse preservada do pecado original. Portanto, Maria está totalmente redimida por Cristo, mas já antes da sua concepção. Os franciscanos, seus irmãos, acolheram e difundiram com entusiasmo esta doutrina, e os demais teólogos – frequentemente com juramento solene – se comprometeram a defendê-la e aperfeiçoá-la.
A este respeito, eu gostaria de evidenciar um dado que me parece importante. Teólogos de valor, como Duns Scotus sobre a doutrina da Imaculada Conceição, enriqueceram com sua contribuição específica de pensamento o que o Povo de Deus já acreditava espontaneamente sobre a Beatíssima Virgem, e manifestava nos atos de piedade, nas expressões da arte e, em geral, na vida cristã. Assim, a fé, tanto na Imaculada Conceição como na Assunção corporal de Nossa Senhora já estava presente no Povo de Deus, enquanto a teologia não havia encontrado ainda a chave para interpretá-la na totalidade da doutrina da fé. Portanto, o Povo de Deus precede os teólogos e tudo isso graças a esse sensus fidei sobrenatural, isto é, essa capacidade infundida pelo Espírito Santo, que capacita para abraçar a realidade da fé, com a humildade do coração e da mente. Neste sentido, o Povo de Deus é “magistério que precede” e que deve ser depois aprofundado e acolhido intelectualmente pela teologia. Que os teólogos possam sempre colocar-se à escuta dessa fonte da fé e conservar a humildade e a simplicidade dos pequenos! Recordei isso há alguns meses, dizendo: “Existem grandes doutos, grandes especialistas, grandes teólogos, mestres da fé, que nos ensinaram muitas coisas. Penetraram nos pormenores da Sagrada Escritura (…), mas não puderam ver o próprio mistério, o verdadeiro núcleo (…). O essencial permaneceu escondido! (…) Pensemos em Santa Bernadete Soubirous; em Santa Teresa de Lisieux, com a sua nova leitura da Bíblia ‘não científica’, mas que entra no coração da Sagrada Escritura” (Homilia. Missa com os Membros da Comissão Teológica Internacional, 1º de dezembro de 2009).
Finalmente, Duns Scotus desenvolveu um ponto no qual a modernidade é muito sensível. Trata-se do tema da liberdade e da sua relação com a vontade e com o intelecto. Nosso autor sublinha a liberdade como qualidade fundamental da vontade, iniciando uma postura de tendência voluntarista, que se desenvolveu em contraposição com o chamado intelectualismo agostiniano e tomista. Para São Tomás de Aquino, que segue Santo Agostinho, a liberdade não pode ser considerada uma qualidade inata da vontade, mas o fruto da colaboração da vontade com o intelecto. Uma ideia da liberdade inata e absoluta colocada na vontade que precede o intelecto, tanto em Deus como no homem, corre o risco, de fato, de levar à ideia de um Deus que não estaria ligado tampouco à verdade nem ao bem. O desejo de salvar a absoluta transcendência e diversidade de Deus com uma afirmação tão radical e impenetrável da sua vontade não leva em consideração que o Deus que se revelou em Cristo é o Deus “logos”, que agiu e age repleto de amor a nós. Certamente, como afirma Duns Scotus na linha da teologia franciscana, o amor supera o conhecimento e é capaz de perceber cada vez mais o pensamento, mas é sempre o amor de Deus “logos” (cf. Bento XVI, Discurso em Ratisbona, “Enseñanzas de Benedicto” XVI, II [2006], p. 261). Também no homem a ideia de liberdade absoluta, colocada na vontade, esquecendo o nexo com a verdade, ignora que a própria liberdade deve ser libertada dos limites que lhe foram postos pelo pecado.
Falando aos seminaristas de Roma, no ano passado, eu recordava que “a liberdade, em todas as épocas, foi o grande sonho da humanidade, desde o início, mas particularmente na época moderna (Discurso ao Pontifício Seminário Maior Romano, 20 de fevereiro de 2009). Mas precisamente a história moderna, além da nossa experiência cotidiana, ensina-nos que a liberdade é autêntica e ajuda na construção de uma civilização verdadeiramente humana somente quando está reconciliada com a verdade. Quando se separa da verdade, a liberdade se converte tragicamente em princípio de destruição da harmonia interior da pessoa humana, fonte de prevaricação dos mais fortes e dos mais violentos e causa de sofrimentos e de lutos. A liberdade, como todas as faculdades de que o homem está dotado, cresce e se aperfeiçoa, afirma Duns Scotus, quando o homem se abre a Deus, valorizando essa disposição à escuta da sua voz, que ele chama de potentia oboedientialis: quando nos colocamos à escuta da Revelação divina, da Palavra de Deus, para acolhê-la, então somos alcançados por uma mensagem que enche de luz e de esperança nossa vida e somos verdadeiramente livres.